Por Thiago Rosenberg
[matéria publicada em 2008, na revista Continuum Itaú Cultural]
John Howard está com 70 anos. Seus dias seguem, atualmente, quase sempre a mesma rotina. Logo de manhã, deixa sua casa – localizada no bairro de Pompeia, zona oeste da capital paulista –, onde vive sozinho, e parte em direção ao cibercafé administrado pelo mais velho dos quatro filhos. São seis quadras de caminhada e, no trajeto, o senhor, que ostenta longos, desgrenhados e brancos fios de cabelo, barba e sobrancelha, troca um afetuoso “olá, como vai?”, marcado por claro sotaque norte-americano, com os conhecidos que lhe cruzam o caminho. Uma vez no estabelecimento do filho, dirige-se a um dos terminais de computador instalados no local, onde chega a ficar, com os olhos atentos e maravilhados diante do monitor, por até oito horas.
Mas, mesmo entocado no interior do cibercafé, John também está presente do lado de fora do recinto, sob o sol, à vista dos transeuntes, incrustado nos muros de concreto e nos postes da metrópole. Seu nome figura entre os dos artistas que, dos anos 1970 para cá, mudaram as ruas da cidade, transformando-as, muitas vezes, em galerias de arte a céu aberto. Ele é – ao lado de criadores como Alex Vallauri – um dos responsáveis pela emergência do grafite paulistano tal qual o conhecemos e o artista homenageado do Dia Nacional do Graffiti (27 de março de 2008). Dar alguns passos em sua casa, que serve também de ateliê, é correr o risco de esbarrar em tinta fresca. Ainda que pouco iluminado e com certo aspecto de abandono, o ambiente flameja cores e vida por todos os lados: nas paredes e nos muitos quadros por elas espalhados, nas mesas repletas de materiais para pintura, em cilindros que se fazem de postes grafitados. Mas John, em dados momentos, parece estar cansado de sujar as mãos com spray, tinta a óleo e nanquim. Ele está mais interessado em criar imagens de pixel no computador – uma cidade na qual, com simples cliques, novos muros são erguidos.
***
Ao recordar determinados episódios da vida, John aponta para um mural pintado por ele em uma das paredes do cibercafé. Passa as mãos pelas imagens representadas e questiona se aquilo tudo é, mesmo que palpável, de fato real. Explica que para cada espectador há uma pintura diferente, uma realidade diferente. E é possível que algo semelhante ocorra quando olhamos para trás. Ao longo dos anos, uma mesma pessoa pode enxergar – e transmitir – seu passado de maneiras distintas. É assim que John, aos 70 anos, transmite o seu:
Na borrifada de spray
Para o pequeno John, nascido em Detroit, no estado norte-americano de Michigan, em 1938, a América Latina era como que uma borrifada de spray ao vento, algo amorfo e sem subdivisões. E essa borrifada só encontrou certa definição nos anos em que o futuro artista de rua, atendendo às expectativas dos pais, se graduava em engenharia pela University of Detroit. Durante o curso, ingressou em um programa de estágio que, ligado à General Motors, reunia estudantes vindos dos vários países que mantinham filiais da multinacional. Foi nessa época que, em decorrência da amizade que fez com três colegas de estágio, John tomou conhecimento de alguns aspectos da cultura brasileira. Ainda assim, mudar-se para o Brasil era uma ideia que não passava por sua cabeça.
O que passava por sua cabeça – ou melhor, não passava, posto que sempre estivera lá – era dedicar-se às artes. E foi com essa intenção que, com 23 anos e já formado em engenharia, rumou para São Francisco, na Califórnia. Lá estudou artes – na San Francisco City College – e, em 1963, ficou com vontade de fazer uma visita aos colegas brasileiros que conhecera em Michigan – e que, a essa altura, já voltaram para o Brasil. John foi, então, encontrá-los em São Paulo. E, de carona, mergulhou naquela borrifada de spray.
México, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá. Cinco meses de estrada. Quando entrou na Colômbia, já estava sujo e sem dinheiro. Mas os habitantes da cidade de Letícia – que faz fronteira com Tabatinga, município brasileiro do estado do Amazonas – acolheram-no como a um guerreiro que retorna do campo de batalha. Não faltava quem lhe desse abrigo e comida. Ficou sabendo que um avião de carga da Força Aérea Brasileira (FAB) parava de tempos em tempos em Tabatinga, com destino a Manaus. E tentou a sorte. Que também não lhe faltou. O avião do governo chegou depois de seis semanas, e John, sem visto, não precisou pedir duas vezes ao capitão que lhe arranjasse um lugar no voo.
Chegara enfim a uma capital brasileira. Mas seu destino era outra capital, a paulista, e ainda havia um Brasil para atravessar – sem dinheiro nos bolsos. Felizmente, novas paisagens trazem novos personagens. E a jornada de John rumo a São Paulo ganhou outro fôlego depois que um grupo de estrangeiros aficionados do xadrez cruzou seu caminho. Algumas apostas no tabuleiro lhe renderam cruzeiros suficientes para pagar uma passagem do Serviço de Navegação da Amazônia e de Administração do Porto do Pará (Snapp) até Belém, onde ficou por duas semanas, tempo necessário para que arranjasse uma carona para Belo Horizonte. Uma viagem de ônibus da capital mineira a São Paulo encerrou a travessia.
A jornada por parte da América Latina e os 18 meses de residência em São Paulo – durante os quais presenciou o golpe militar de 1964 – deram a John uma boa ideia das realidades existentes abaixo da fronteira sul dos Estados Unidos. Quando retornou para a Califórnia, levou consigo uma nova versão daquela borrifada de spray e, com ela, alguns questionamentos. Desde que, na capital paulista, tomara conhecimento da produção dos artistas da Semana de Arte Moderna de 1922, ficou pensando se já não estava na hora de surgir na cidade um novo movimento cultural. Pensou nisso por anos, até que, em 1973, depois de concluir mestrado em literatura inglesa e norte-americana pela San Jose State College – hoje California State University at San Jose –, partiu de volta para São Paulo, agora com visto permanente.
Um novo movimento
Se o simples bater de asas de uma borboleta pode, de acordo com uma das mais repetidas alegorias ligadas à teoria do caos, desencadear um tufão do outro lado do mundo, o que dizer das “sprayadas” que John, logo em seus primeiros anos como cidadão brasileiro, distribuiu pela cidade? Elas talvez não tenham interferido na formação de um cataclismo em Pequim, mas é certo que também não se limitaram a incrustar-se nos pedaços de concreto que coloriram. Elas reverberaram. E essa propagação era justamente o objetivo de John – que se preocupava em instigar novos artistas mais do que promover isoladamente seu trabalho. Ele percebeu que os jovens paulistanos tinham uma enorme necessidade de se expressar, de sair do anonimato, mas não encontravam meios para tal. O que eles poderiam usar para suprir essa necessidade criativa, John logo percebeu, estava espalhado pela metrópole: muros. E, com essa preocupação mais didática do que estética, ele fez centenas de grafites pelas ruas da cidade, muitos deles com pouco acabamento, para que as pessoas entendessem que aquilo era algo que poderia ser feito por qualquer um.
Repetir, todos os dias, a mesma ação; e não assumir a autoria. John lera em algum lugar que esses dois pontos deveriam ser observados por aqueles que desejam mudar algo em seu canto de mundo. Seguiu-os à risca e começou a fazer desenhos não assinados em uma infinidade de postes da cidade (a ideia de grafitar postes tornou-se uma das principais contribuições estéticas de John para o grafite paulistano). Certo dia, ao caminhar pelas ruas, percebeu que alguém havia feito uma interferência, também em grafite, em um desses postes. Ficou extremamente feliz. “Está funcionando!”, pensou. O responsável pela interferência, descobriu-se depois, era Rui Amaral, um dos primeiros artistas de rua influenciados por John – e que, em pouco tempo, realizaria obras em parceria com seu mentor.
É certo que os trabalhos de John, abertos ao diálogo com toda a sociedade, não chamaram a atenção apenas de artistas. Suas “cabeças feitas” – um dos temas recorrentes entre suas imagens – dirigiam-se a todos aqueles que caminhavam com os olhos atentos nas “telas de concreto”. E algumas das mensagens que o grafiteiro espalhava pela cidade – “Deus se come-se” era uma delas – instigavam a curiosidade, a indignação, a admiração e toda sorte de reações em quem as liam. Por esses e outros motivos, ele virou um personagem bastante presente nas páginas de jornais e revistas dos anos 1980 e 1990. Muitas das matérias exaltavam sua postura indignada em relação aos ataques à sua obra, caso do texto “Grafiteiro ameaçado de prisão”, publicado na Gazeta de Pinheiros de 6 de julho de 1989: “Em janeiro de 1988, funcionários municipais, a mando do prefeito Jânio Quadros, passavam cal sobre os murais-grafites do ‘buraco da Paulista’, e um dos grafiteiros tentou proteger sua obra: ‘Fiquei na frente dos trabalhos, passaram cal em cima de mim’, conta John Howard (...)”. Mas John é hoje mais sereno ao se referir à oposição ao seu trabalho. “Não concordo, mas é inevitável; é como o envelhecimento”, diz ele, passando as mãos pelos fios de cabelo branco, “você pode não concordar com a velhice, mas ela chega de qualquer jeito”.
Um outro brilho
O grafiteiro descobriu o novo mundo da arte digital em 1995, quando a West Chester University, da Pensilvânia, o chamou para ministrar o curso de participação comunitária. Na ocasião, a universidade ofereceu ao seu corpo docente laboratórios de informática, nos quais eram dadas orientações sobre como usar o computador para, entre outras tarefas, planejar aulas e calcular notas e médias. Ele aproveitou a oportunidade para conhecer os diferentes programas instalados nas máquinas, e, nessa investigação, encontrou o Photoshop. Tendo em mãos um manual com dicas de utilização do software, John começou a se familiarizar com aquele que viria a ser seu novo ateliê.
***
Voltamos a 2008. E ao septuagenário John, que, em frente ao computador do cibercafé, aponta – não mais com as mãos, mas com a seta do mouse – os detalhes de seu mais recente ambiente de trabalho. “São centenas de recursos, de comandos!”, explica ele, apaixonado. “Você faz um desenho e pode espremê-lo ou alargá-lo. Pode colocar um desenho em cima do outro, com esse efeito de transparência. Pode dar ao desenho uma aparência de aquarela, por exemplo; e, se não gostou do resultado, mudar para óleo sobre tela. É muito interessante.”
E também é muito interessante, acredita John, o efeito que a obra de arte digital causa no espectador. “A luz vem de trás da imagem, passa pela tela e entra no seu olho”, comenta. Até seus trabalhos feitos a mão, quando reproduzidos digitalmente no computador, lhe parecem mais impactantes. “Aquilo ali [apontando para sua pintura, exposta na parede] é bom, tudo bem, mas, quando vejo a foto disso no monitor, acho melhor! Tem um outro brilho!”
O sol já se pôs e, em pouco tempo, John retornará para sua casa, para seu “ateliê de carne e osso”, onde ainda vive, em contato com a tinta fresca, o grafiteiro que fez história nas ruas de São Paulo. Mas, neste momento, ele está diante daquilo que julga ser o futuro da arte. “Pintar com óleo, com nanquim... Isso tudo suja as mãos, suja a roupa. É como usar a máquina de escrever: você faz um erro; aí tem de sujar tudo para consertar”, compara. “No computador é diferente, é mais prático. E você ainda pode enviar para o mundo todo pela internet. Eu quero promover isso assim como promovi o grafite.”