Por Thiago Rosenberg
[conto selecionado na edição de 2017 do Prêmio Sesc de Contos Machado de Assis]
De abutre, as asas. Os abutres se aproximam e com eles vem o som do bater de suas asas. O ruído de penas roçando penas, que nem um assopro. Não, um arfar. Arfar arfar arfar, é bem esse o som, arfar arfar arfar. Assim que o escuto, abaixo a cabeça e fecho os olhos. Não por medo: por repulsa, asco. E não há problema algum em deixar a minha nuca assim exposta, vulnerável: não é atrás de mim que eles voam, não sou eu quem eles querem.
Mas também não deixo de dar uma breve espiada. Bem como um abutre, também eu, mas daqueles que permanecem em seu galho, as asas guardadas, mantendo as penas quietas, caladas. Então volto a abaixar a cabeça – que não chegou a se erguer completamente – e a expor a nuca. E fico pensando se devo ajudar a Carniça, se cabe a mim essa responsabilidade. Penso nisso. Eu sou gente, afinal de contas. Gente, pessoa. Ser humano. Não que isso queira dizer algo por si só. No dicionário o humano aparece como sinônimo de bondoso, compassivo. Mas não se vive num dicionário, não é mesmo?
***
Mal começo a pensar em outras coisas e – arfar – lá vêm eles outra vez. Arfar. Arfar arfar arfar. O asco. Cabeça baixa, nuca exposta.
E uma breve observada, como de costume.
Vejo que eles rodeiam a Carniça. Estão todos no chão, em círculo; não voam, mas ainda se ouve o roçar das penas – mesmo pousados, eles não deixam de bater as asas. Vão lentamente fechando o cerco, mas fazem isso batendo as asas como se voassem o mais veloz possível. Tento não olhar para a Carniça – prefiro sentir raiva do algoz a sofrer de compaixão pela vítima. Faz sentido, não? Fico pensando nisso enquanto volto à minha posição inicial. A cabeça baixa, a nuca exposta.
E depois de muito arfar eles partem. Deixam a Carniça intacta. Fisicamente, pelo menos. Não tenho dúvidas de que desejam meter o bico nela, despedaçá-la, comê-la. Ainda vão fazer isso tudo; mas por enquanto se contentam em torturar a pobre coitada. Devem gostar de comer carne tensa, esses abutres.
***
Arfar.
Arfar arfar arfar.
O asco.
A cabeça baixa.
A nuca.
A breve observada, irresistível costume.
Tenho a impressão de que os abutres salivam. Umas gotas de baba escorrem pelos bicos enquanto os bichos vão se comprimindo naquele círculo danado, encurralando a Carniça, cada vez mais próximos dela. Alguns deles se adiantam e batem as asas barulhentas em diferentes partes do corpo encolhido da desgraçada, e depois voltam para a circunferência. Ela abaixa a cabeça, expõe a nuca trêmula. Eu também: cabeça baixa, nuca exposta. Mas não deixo de imaginar a cena. Não sei o que é mais terrível, o que vejo dentro da minha cabeça ou o que está de fato acontecendo lá na ciranda dos abutres. O barulho das asas ocupa os dois lugares, em todo caso, e ele é horrível. Eu preciso ajudar, penso. Eu devo ajudar.
Então caminho devagar, com pressa, mas devagar, em direção ao círculo – ainda de cabeça baixa, ainda de olhos fechados. Vou me guiando pelo som, pelo barulho das asas, e pelo odor do suor nervoso da Carniça. Conforme eu me aproximo o barulho fica cada vez mais alto. Cada vez mais alto. Cada vez mais asco.
Por fim, abro os olhos em meio a um arfar ensurdecedor. E vejo a Carniça. Vejo a nuca da Carniça, bem aos meus pés. Não há abutres em volta. Só há ela e eu – e o barulho das asas. Ela ergue a cabeça e me fita assustada. Seu tremor vira uma convulsão, ela chora, volta a abaixar a cabeça, volta a expor a nuca. Sinto que salivo. E, parado, bato as asas como se voasse o mais veloz possível.