Por Thiago Rosenberg
[conto publicado em 2009, na revista Continuum Itaú Cultural]
1. O palhaço
Ele precisava das risadas. Não dos sorrisos, leves contrações musculares, olhares alegres; isso não bastava. Precisava das gargalhadas, ruidosas, daquelas que criam lágrimas, que fazem doer a barriga, que causam tremores no corpo, que abalam a respiração. Em nada se importava com o dinheiro que não tinha para pagar as contas, ou com a solidão que o aguardava em casa, após os espetáculos, ou com a irritação que o pó com o qual cobria a face lhe deixava na pele. Não se importava com nada disso; contanto que ganhasse, mesmo que por poucos minutos do dia, as risadas do público. Sempre foi uma necessidade pessoal, esta de arrancar dos outros gargalhadas. Cobrava-as dos pais e dos irmãos, na época em que com eles vivia; dos colegas da escola, da rua, do bairro; das garotas que paquerava; dos coadjuvantes de seu cotidiano – garçons de bares e restaurantes, cobradores de ônibus, atendentes de lojas. E, desde que fizera desta busca por risadas seu ofício, um semblante circunspecto lhe indicava sinais de ruína não apenas social, mas também profissional. Não admitia semblantes circunspectos, senão o seu. Dera-se conta, com os anos, de que era justamente se mantendo sério que conseguia as melhores gargalhadas. E, assim, adotou a fórmula: não rir para fazer rir.
2. O marido
Estava com as chaves do apartamento e do carro em mãos, pronto para sair, caminhando lentamente em volta da mesa da sala de jantar, já com as luzes apagadas. A única luz acesa vinha do fundo do corredor, do quarto, de onde a mulher despontaria, a qualquer momento, também ela pronta para sair. Chegaria com brincos de brilhante e um dos seus vestidos escuros. O cabelo ondulado estaria solto, cuidadosamente penteado. E com ela viria o som das pancadas que o salto dos sapatos produz no piso de madeira, o som dos seus passos apressados. Ele consultava o relógio, conferia se não deixava nenhuma janela aberta, nenhum aparelho ligado. Talvez ignorasse o motivo de sua impaciência. Não tinha pressa para sair, nem estava animado para tal. Circo, pensava ele, meio encabulado, meio incomodado. Desde quando ela gosta de circo? Nunca demonstrou, para mim ao menos, o menor interesse. Está cansada dos nossos programas? Dos restaurantes, do cinema? Ela apareceu, repentinamente, na sala, disse pronto, podemos ir. Não estava com o vestido escuro. Usava uma blusinha clara, com estampas de flor; e o cabelo, preso num rabo de cavalo, deixava à vista as orelhas, sem brinco nenhum. E sua chegada não foi anunciada, como ele esperava, pelo som dos passos apressados no corredor. Só mais tarde, durante o espetáculo, entediado com a dupla de malabaristas, o marido chegaria a uma explicação razoável para o surgimento silencioso: olhou para os pés da mulher e percebeu que ela não usava os sapatos de costume; vestia uma sandália leve, quase muda. O que deu nela, ele pensou. Vamos, ela disse. E saíram, deixando acesa a luz do quarto.
3. A brecha
A dupla de malabaristas encerrou sua impecável – e, talvez por isso, enfadonha – apresentação; e o palhaço, vindo de trás das cortinas, mostrou-se ao público. Caminhava lenta e silenciosamente, vestindo traje social e mantendo no rosto, abaixo da grossa camada de pó, o semblante circunspecto. Não precisou de muito tempo para arrancar da plateia as primeiras gargalhadas; bem como as demais. A sucessão de risadas alimentava sua autoestima, que, por sua vez, deixava-o seguro o bastante para evocar mais e melhores risadas. Já podia afirmar que a performance da noite seria um sucesso – não fosse um detalhe, uma pequena brecha que se abria, emburrada, no meio da risadaria. A princípio, o palhaço não conseguiu identificá-la, mas sentia, como que por instinto, sua presença. E essa sensação carcomia a autoestima que conquistara até então. Sabia que, de repente, seria surpreendido por um rosto solene; um rosto sóbrio que, escondido na mata densa de rostos trêmulos e sorridentes, se preparava para o bote. Correu os olhos pela multidão de espectadores. Onde está você? Sentiu que começava a suar. Apareça! Sentiu que começava a tremer. E no ápice do desespero, prestes a desabar, avistou um porto seguro – de blusinha florida e rabo de cavalo. Ela ria sem parar, gargalhava com todos os músculos do rosto, arreganhava os dentes, se lambuzava com as lágrimas. Urrava descontroladamente, histérica, frenética. E todo esse descontrole, essa histeria e esse frenesi deram ao palhaço a paz de que precisava para se esquecer do inimigo oculto. Agarrou-se àquele sorriso, àquela gargalhada. Só tinha olhos e ouvidos para ela. Hoje eu estou aqui para você, ele pensou. Só para você.
4. O duelo
Por que esse palhaço não tira o olho dela? O marido já chegara incomodado ao circo; agora começava a se perturbar. E por que ela ri tanto? Olhava para a mulher, olhava para o palhaço. Eles se conhecem? Via que a mulher agarrava os joelhos com as mãos e contorcia os pés dentro da sandália. Foi por isso que ela me trouxe aqui? Para conhecer seu novo amigo? Sentiu que começava a suar. Por isso colocou essa roupa? Sentiu que começava a tremer. Ela ri de mim? Sabia que, se falasse qualquer coisa, iria irritá-la, transformaria em fúria toda a sua euforia; e, tentando intervir de alguma maneira na situação, repousou o braço direito sobre os ombros da mulher. Foi o bote que o palhaço havia pouco pressentira. Do picadeiro, viu seu porto seguro ser invadido por aquele homem mal-humorado, por aquele homem que, como ele, não ria. Lembrou-se do que havia pouco o atormentava; e um calafrio vibrou em seu estômago. Enfim, você resolveu aparecer. Agora somos nós dois. E você, espero, vai rir por último. Fixou o olhar em seu rival. Uma risada, ao menos uma risada você vai me dar! Nada mais importava. Hoje eu estou aqui para você. Só para você. O marido percebeu que os olhos do humorista se voltavam agora para ele, e isso o deixou, em medidas iguais, satisfeito e aflito. Satisfeito porque, com seu golpe de mestre, confirmou suas suspeitas; e aflito porque suas suspeitas, confirmadas, representavam sua miséria. Certo, ele pensou. Eu sou o marido da mulher do palhaço. Vasculhou os olhos que o encaravam do picadeiro, em busca de mais informações, mais detalhes da relação sórdida que aquele sujeito mantinha com a sua, até então sua, mulher. Queria descobrir como tinham se conhecido, o que gostavam de fazer juntos, se ainda havia uma gota de culpa em suas consciências. Ele quer brincar o jogo do sério, concluiu o palhaço. Recordou-se de quando era garoto, do desafio que lançava aos colegas – eu olho para você, você olha para mim; quem rir primeiro perde. Ele nunca perdia. Assim o espetáculo corria para o público; e se arrastava para os homens que não riam. Sem parar, sem descanso, o marido cavava, com seus olhos, os olhos do palhaço; mas não conseguia desenterrar as respostas pelas quais procurava. E, como se cavasse não com os olhos, mas com seus próprios braços, pá em mãos, sentia-se cada vez mais esgotado; fisicamente esgotado. Escorria aos poucos pelo assento, deixando preso o braço direito nos ombros da mulher. Ela nem percebe meu braço nos seus ombros. E os ombros do palhaço, até então firmes e erguidos, começavam a vergar, dobravam-se diante do olhar inquisidor do marido. Exausto, tão esgotado quanto o seu oponente, o humorista se deu conta de que não era uma brincadeira, um jogo do sério, o que havia entre os dois. Era um duelo. E duelos, pensou ele, não admitem risadas. Ao contrário de brincadeiras ou jogos, eles celebram a hostilidade, são travados entre inimigos, entre opostos. E, com isso em mente, o palhaço elaborou, nos segundos finais do espetáculo, uma estratégia para mudar a situação.
5. A certeza
O duelo entre palhaço e homem tinha que virar uma brincadeira entre dois homens. Só assim, esperava o humorista, o marido poderia vê-lo como semelhante – e se sentir à vontade para, finalmente, rir. O palhaço, portanto, deveria deixar de ser um palhaço; e virar um homem. Fechou os olhos e esfregou as mãos suadas no rosto, desfazendo a máscara de pó. Você é mesmo muito íntegro, disse, em pensamento, o marido. Tem a decência de mostrar a cara; mas já perdeu a coragem de olhar na minha cara. Ainda com os olhos fechados, o homem do picadeiro deu início ao último ato da apresentação. Agora é a melhor parte, é a parte mais engraçada! Realizou os movimentos impecavelmente. E recebia, pelos ouvidos, o retorno dos espectadores. Cada tropeço gerava uma onda de risadas; cada tombo provocava uma tormenta de gargalhadas. Você está rindo; eu sei que está. Estatelou-se no chão – e um som de tambor marcou o fim do espetáculo. As risadas – agora misturadas à salva de palmas – não cessavam. Levantou-se e, sem abrir os olhos, agradeceu ao público. Você está rindo; eu sei que está! E, agarrado a essa certeza, partiu. Eu sei que está! O domador e seu leão já ocupavam o picadeiro. Agora eram eles que travariam um duelo.