Por Thiago Rosenberg
[matéria publicada em 2008, na revista Continuum Itaú Cultural]
O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira. (Trecho do conto “Ideias de canário”, de Machado de Assis, Páginas Recolhidas, 1899)
Foi em 2004 que dona Maria Fernandes morreu. Tinha 83 anos, e seu marido, Celsoares de Oliveira, um ano mais velho, arrumou seus pertences e se mudou. Mudou-se para o quarto ao lado – até então ocupado pelo neto, Almir –, com menos espaço, menos móveis e menos memórias. Era, possivelmente, o máximo que ele poderia fazer: diz que jamais deixaria Passa e Fica, município do agreste potiguar, grudado na divisa com a Paraíba. “Minha alegria é ser passa-fiquense”, conta. “Não tem outro lugar pra mim. Construí família aqui, perdi família aqui. E pretendo morrer aqui também.” Celso Caboclo, como é conhecido na região, só não nasceu em Passa e Fica porque na época, 1920, ela ainda não existia.
“Isso aqui tudo, daqui pra Lagoa d’Anta, era mata”, lembra ele. O local, que pertencia à cidade de Nova Cruz, servia basicamente como passagem, muito utilizada por comerciantes de gado que conduziam seus rebanhos às feiras da Paraíba e de Pernambuco. A ideia de permanência apareceu depois de 1929, quando foi montado na região um estabelecimento que visava dar alimentação e abrigo aos viajantes. Uma comunidade local foi surgindo e, em 1962, o espaço se desmembrou de Nova Cruz. E nasceu Passa e Fica, o mais jovem município do Rio Grande do Norte, ou, como diz a placa que recepciona os visitantes, a “cidade do passado, presente e futuro”. Mesmo que a agricultura e a pecuária continuem movendo a economia local, o município, que conta com cerca de 11 mil habitantes, se orgulha do constante crescimento do território urbano.
Passa e Fica. Passagem e permanência. Se antes a região era palco de travessias, ela é hoje a morada de pessoas como Celso Caboclo, ex-trabalhadores rurais que, sem sair do lugar, migraram do campo para a cidade. Cidade da qual, por vontade ou por falta de oportunidade, não se veem partindo – ao menos com vida. Passa e Fica não é, como o sertão de Guimarães Rosa, “do tamanho do mundo”, mas é o próprio mundo para essas pessoas: que ficam no mesmo lugar, mas têm consciência de que essa permanência é, também, uma passagem.
A multiplicação dos mundos
Primeiro, Celso Caboclo recorda os dias do passado – quando Passa e Fica era só mata –, época em que ele ganhava a vida como abatedor de gado. “Eu matava boi. O trabalho era fácil. Matava tudo de bala, bala de espingarda, na testa do bicho.” Segue narrando causos do período, fala sobre o cavalo que então usava, Pé Ligeiro, sobre os machucados que a lida imprimiu em seu corpo. Depois, mira o presente e uma parcela do futuro, e declara que é uma alegria ver a cidade crescer. Ainda que o trate com aparente carinho, Celso não demonstra sofrer de saudade do passado. O que passou, ao menos, lhe rendeu histórias para contar.
O mundo de seu Celso multiplica-se constantemente. Analfabeto, ele é senhor de um universo de palavras, palavras faladas, inseridas em histórias, causos, anedotas. “Repare a história”, diz, e o que se segue é a criação de um novo mundo, esteado pela voz do octogenário. Em dados momentos da narrativa – quando Celso está mais instigado, os braços movimentando-se sem parar –, as palavras embaralham-se, tornam-se subitamente incompreensíveis. Incompreensíveis como o mundo.
Mas, fisicamente, Celso não tem vontade de conhecer novos mundos, fora de Passa e Fica. Suas expedições limitam-se àquelas oferecidas pelo rádio e pela televisão. “O repórter está sabendo do movimento do mundo”, comenta, referindo-se aos noticiários aos quais assiste diariamente, e que lhe trazem relatos de outras supostas realidades. Ele também frequenta as novelas, mais descontraídas do que os telejornais. “Gosto da Cabocla, daquela com o Barão de Araruna...” E, em relação àquelas que se passam na cidade grande, ambientadas em um mundo distante do seu, ele diz: “Dessas eu gosto médio”.
Talvez seja por causa dessa sobreposição de universos – alguns narrados por ele, outros transmitidos pela televisão – que Celso apresente diferentes interpretações de mundo. Primeiro, ele declara: “Meu mundo é Passa e Fica”. A seguir, diz que o mundo é o povo. E, depois de pensar mais um pouco, retifica: “O mundo é vida. Nós morremos e não tem mais mundo”.
A alegria dos tempos atrás
Há alguns anos – ela não se recorda exatamente quando –, dona Julinha resolveu colocar suas memórias no papel. Queria fazer algo como uma autobiografia ilustrada. Pegou um caderno escolar, pautado e sem espiral, e nele redigiu – ora com letra de forma, ora com letra de mão, usando aquelas canetinhas hidrográficas coloridas, com tinta laranja, azul, amarela, verde – impressões sobre episódios, lugares e pessoas marcantes de sua vida. Ao lado de cada trecho escrito, colou, na falta de fotografias suas, figuras recortadas de livros didáticos, jornais e revistas. “Neste caderno eu conto algumas coisas passadas na minha vida”, apresenta ela na primeira página. “Como na época não havia retratista coloco estas figurinhas cada figurinha representa um passado da minha vida.”
Dona Julinha, essa sim, sente falta do passado – dos passados. Ela tem 74 anos e não sabe ao certo qual é seu nome de nascença. Quando menina, em Serra de São Bento, Rio Grande do Norte, perdeu a mãe e foi deixada por seu pai com um casal de idosos – “o velhinho era Targinho, a velhinha era Chiquinha”, lembra –, que a criou e a educou. Grande parte do caderno faz menção à infância – em suas palavras, “a fase mais bela na vida dos seres humanos”. Ao lado de uma imagem impressa em papel-jornal, de uma criança que sorri debruçada na janela de uma modesta casa de pedra e madeira, há as seguintes palavras: “Esta menina feliz faz lembrar quando eu era feliz aos meus dez anos aos meus onze anos em uma casinha humilde assim dentro dela morava uma rosa esta rosa era eu feliz, sorridente, tristeza não morava comigo”.
O caderno traz, ainda, considerações sobre o trabalho na roça – “na minha época o trabalho na roça não era desonra quase toda moça trabalhava e não havia crítica até achava divertido” – e sobre o casamento: “Este casal”, referindo-se a um recorte provavelmente retirado de um editorial de moda, “representa a vida de amor de casamento (...) me casei por amor foi meu charme e minha felicidade”. Ela se casou em Serra de São Bento e, em 1973, mudou-se com a família para Passa e Fica, onde teve 13 filhos e trabalhou como professora em uma escola primária. Em 2003, Pedro, seu marido, morreu. E, depois disso, a tristeza foi morar com ela.
Hoje, ela passa os dias sozinha em sua casa e, de noite, por ter medo de dormir desacompanhada, ocupa um quarto sem janelas na residência da filha Fátima. “Desde pequenininha que sou medrosa”, diz. “Tinha medo de alma; agora o medo é de gente viva.” A morte do marido lhe tirou o ânimo: “Perdi o equilíbrio das coisas”, conta. “Antes de ter sofrido esse desgosto eu saía, visitava as escolas... Hoje não me sinto muito só, mas não me sinto muito bem.” Pensando em sua vida, ela canta assim:
Tantas lágrimas eu tenho derramado,
só em pensar que não posso mais reviver o meu passado.
Vivia cheio de esperança, de alegria, eu cantava, eu sorria.
Mas hoje em dia eu não tenho mais a alegria dos tempos atrás.
Julinha se aposentou do colégio em 1986. Outro pesar em sua vida. Foi em maio, no meio do ano letivo. “Eu entreguei a escola para uma professora nova e me despedi de todos os alunos. Eles tudinho baixaram a cabeça, do lado da minha mesa, enquanto eu ia embora. E um deles, um moreninho, me acompanhou de mãos dadas até a porta, chorando, chorando.” Ela não pensa em morar fora de Passa e Fica, mas, se soubesse por onde anda esse menino, iria até ele e lhe ensinaria o que faltava para concluir aquele ano letivo.
Ao contrário de Celso Caboclo, que passeia frequentemente pelas ruas da cidade, a qual ele adora ver crescer, Dona Julinha prefere ficar em casa. Mas, nas ocasiões em que sai, sai sempre com o passado: “Quando eu passo na frente das escolas, ouço as mesmas cantigas que eu cantava com as crianças, mas as pessoas são todas outras.”
O trabalho do tempo
Seu Inácio se chama João. João Ribeiro da Silva. Mas são poucos, além de seus parentes e de seus documentos oficiais, os que o conhecem por esse nome. João virou Inácio muito antes de chegar a Passa e Fica, quando ainda era um garoto em sua terra natal, Barra de Santa Rosa, Paraíba. Ele adoeceu depois de se expor à fumaça do veneno que seu pai utilizava para dar cabo a uma infestação de formigas. E, para tapear a moléstia, sua mãe achou melhor realizar a troca de nomes. “Naquele tempo se acreditava nessas coisas”, conta o velho Inácio, aos 83 anos, sem quaisquer sequelas da enfermidade da infância.
Ele forma, com Amália Maria da Conceição, um dos casais mais longevos de Passa e Fica. Os dois se conheceram na casa de farinha de Serra do Bom Bocadinho, sítio localizado em Barra de Santa Rosa. “A gente moía mandioca e namorava, moía mais mandioca e mais namorava”, recorda ele. Casaram-se em 1948, tiveram 12 filhos, e, depois de morar em uma porção de cidades, sempre trabalhando na “farinhada”, se fixaram em Passa e Fica em 1981. Dona Amália garante que nunca trocaram, dentro ou fora de casa, nenhum tipo de “palavra feia, nome ruim”.
“O mundo é do mesmo jeito que Deus fez; mas o povo é sempre diferente.” Seu Inácio sabe que o tempo, ininterrupto, fará sua parte, substituirá o povo atual – do qual ele, Dona Amália, Celso Caboclo, Dona Julinha e tantos outros fazem parte – por novos povos. Mas, enquanto o tempo faz seu trabalho, seu Inácio quer mesmo, depois de tanto migrar – de uma cidade para outra, de um nome para outro –, é ficar em seu mundo, em Passa e Fica, ao lado de seu povo. “Fora daqui, só quero ir pra um lugar: depois daquela porta larga, lá onde tem um cabra que bota a gente debaixo da terra e a gente não volta mais.”
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O cabra que cuida da tal porta larga é José Roberto Pedro, ou Lilita. Passa-fiquense nascido em 1965, “cava buraco de cova” desde 1994, quando foi convidado a exercer o cargo pelo então prefeito do município, Ariano da Cunha Lima. E, pelo que tudo indica, é o homem mais adequado para o serviço. Foi aberto, em 1997, um concurso para determinar quem seria seu sucessor como coveiro de Passa e Fica. Só uma pessoa se candidatou: ele mesmo.
Lilita já está acostumado com a profissão. Sente pena das pessoas as quais enterra, mas – como bom profissional – nada tão intenso a ponto de impedi-lo de finalizar o trabalho. No cemitério, já quase não há lugar para novas covas, e é tarefa das mais complicadas andar pela terra lamacenta do local sem pisar em “moradas” alheias. Mas Lilita parece estar em casa: caminha sem a menor dificuldade, como um gato em cima do muro. E a cidade também já está acostumada a associá-lo à sua profissão. Para alguns, ele é, simplesmente, “o coveiro”; para outros, mais criativos, ele é “o delegado perigoso: prendeu, ninguém solta”. Ainda assim, mesmo que habituado, Lilita chega a perder o sono por causa do serviço. “Eu costumo sonhar com os mortos”, conta ele. “Mas sei que sonho é coisa ilusão.”
Em todo caso, a última migração – física, ao menos – não é vista com temor por muitos dos velhos habitantes de Passa e Fica. Dona Julinha tem medo é de ser enterrada viva. “Nem esperam o corpo esfriar”, diz ela, “e já vão enterrando a pessoa”. E Celso Caboclo é mais destemido: “Não tenho medo da morte. Nada. Eu amo a morte”, declara. “Amo a morte porque é uma certeza.”