Por Thiago Rosenberg
[matéria publicada em 2008, na revista Continuum Itaú Cultural]
Na quarta-feira, 19 de dezembro, o Circo Zanchettini, comandado pela família quase homônima Zanquettin, chega a Quirinópolis, na região sudoeste do estado de Goiás. São quatro carros, quatro caminhões, três trailers e 11 carretas – cinco cheias de carga e animais e seis mobiliadas e equipadas com toda sorte de eletrodomésticos, além de, entre outros, aparelhos de som, televisores, ar-condicionado e computadores, alguns com webcam e acesso à internet. Eles são conduzidos pelos artistas e técnicos circenses que, há dois dias, deixaram para trás o público de Rio Verde, também no interior de Goiás. Até a noite de estreia do espetáculo, na sexta-feira, a família deve ainda certificar-se de que o terreno atende a suas necessidades de iluminação, água e segurança e, logicamente, montar o circo: alinhar os mastros, erguer e derriçar a lona (de 1.600 m² e aproximadamente 2 toneladas), preparar o picadeiro e a marquise, cobrir de feno o solo etc. Um processo árduo que, em conjunto com a intensa itinerância, dizem os Zanquettin, determina se um artista é de fato ou não um circense.
“Para ser um circense”, afirma Erimeide Zanquettin, “é preciso viver o circo em sua plenitude”. Encará-lo como local de moradia e de trabalho da família; transmitir às novas gerações a técnica, a ética e a cultura circenses; levar os espetáculos a diversas – e muitas vezes adversas – regiões, das capitais às mais remotas e inacessíveis cidades. Enfim, agregar os elementos de um estilo de vida essencialmente voltado para o circo dito tradicional, de lona, itinerante, cujos números e técnicas foram transmitidos ao longo de décadas de história – e que deve, em breve, ser patrimonializado pelo Iphan como bem cultural imaterial (o processo de registro encontra-se em andamento).
De cidade a cidade
Erimeide é filha de dona Wanda, a matriarca do Zanchettini. Encontram-se, em Quirinópolis – onde calculam permanecer até os primeiros dias de 2008, antes de rumar a Itumbiara –, outros seis dos dez filhos da septuagenária (em ordem de nascimento: Edlamar Maria, Amaury, Solange Maria, Márcio, Márcia Aparecida e Silvio), alguns deles acompanhados do cônjuge e dos rebentos. Cerca de 20 parentes, entre crianças e adultos. Mais os animais – um tigre, dois leões, três cavalos, três pôneis, dois avestruzes e um cão – e, como não?, os agregados; aqueles que, impressionados com a visita dos artistas à sua cidade, decidiram acompanhar a itinerância do grupo – às vezes entrando de fato para a família.
É o caso de Inara. Natural de Dionísio Cerqueira, em Santa Catarina, ela vivia em Guarujá do Sul, no mesmo estado, quando o Circo Zanchettini por lá passou. Era 1993, e Inara, então com 17 anos, cursava o ensino médio. Acompanhada de duas colegas – Vanusa e Jonara –, foi assistir ao espetáculo e lá conheceu Amaury, ou Palhaço Pequi, que apresentava, entre outros números, o esquete cômico Morrer para ganhar dinheiro. Os dois começaram a se encontrar, mas logo o circo rumou para outro município, Descanso. “Se você quiser que eu vou até Descanso me liga: 42-297, é o telefone da vizinha”, escreveu ela em uma carta. “Fiquei sabendo que vocês irão voltar daqui 3 anos, ai qui ódio todo esse tempo eu não vou aguentar.” Ela entregou a mensagem a um ex-funcionário do circo, Cléber, que ainda estava em Guarujá do Sul, mas ele a perdeu. Passadas aproximadamente três semanas, então, Amaury encontrou a missiva na beira da escada do ônibus da mãe, um Mercedes azul. Ligou para a garota e foi buscá-la em Guarujá do Sul. Inara “fugiu com o circo”, e logo começou a aprender a arte circense. Eduardo, ou Palhaço Cachorrão, o mais velho dos quatro filhos do casal, nasceu no ano seguinte.
(O segundo filho, Victor, hoje com 11 anos, não teve a mesma sorte que o pai. Ele conta que, há três anos, quando o circo estava em Coxim, em Mato Grosso, se apaixonou por uma garota chamada Luana – “eu gostava da risada dela” –, mas, uma vez que os artistas voltaram para a estrada, os dois nunca mais se viram. “Se pelo menos ela tivesse Orkut”, lamenta o rapaz.)
Esse nomadismo constitui uma das principais características do cotidiano circense de tradição familiar. E interfere não apenas na vida afetiva dos artistas – as crianças, por exemplo, frequentam uma escola em cada cidade; isso quando os colégios em questão têm vagas para os novos alunos. A estrada e todos os municípios a ela ligados são o lar dos Zanquettin. Eles mantêm um imóvel em Curitiba, no Paraná, mas este é raramente visitado. Não há quase nada na casa – se alguém porventura tentar assaltá-la não encontrará muito mais do que um aparelho de telefone. Serve basicamente para reunir a correspondência do circo e abrigar algum membro enfermo da família, já que ele estará próximo a bons hospitais.
De geração a geração
Já é quinta-feira, o dia anterior à estreia do espetáculo, e a chuva, ainda que fraca, não cessa desde que o Zanchettini apareceu em Quirinópolis. Mesmo assim, os homens da família – mais três quirinopolinos, que vão receber R$ 3 por hora de serviço – não interrompem o trabalho braçal de erguer o circo. “Nem engenheiro faz isso como nós”, gaba-se Márcio, referindo-se à precisão com que os artistas colocam o circo de pé, transmitida de geração a geração.
O tom orgulhoso com o qual os circenses aludem ao aprendizado adquirido ao longo das décadas talvez seja o bastante para compreender – não necessariamente concordar com – sua postura em relação às escolas de circo. “Elas formam artistas, mas não circenses”, diz o caçula de dona Wanda, Silvio – que, ao lado do cavalo Champa, levou o Circo Zanchettini à primeira posição no concurso O Melhor do Circo, promovido em dezembro pelo programa da Rede Globo Domingão do Faustão. “Os alunos dessas escolas não aprendem a viver como nós, a pegar a estrada, a desmontar, transportar e montar a lona”, completa.
Ex-diretor de artes cênicas da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Humberto Braga integrou a comissão que criou, em 1982, a Escola Nacional de Circo. Ele conta que os professores originais da instituição eram circenses tradicionais, mas “a escola gerou grupos, ou trupes, de outra natureza” – muitos deles representantes do chamado novo circo, que une as linguagens da dança e do teatro à arte circense; caso, por exemplo, da companhia carioca Intrépida Trupe.
“O que os artistas de tradição familiar têm dificuldade em entender”, defende Braga, “é que essa é uma mudança natural da arte. É inclusive uma riqueza da linguagem circense; mostra que ela está viva, já que tudo o que é vivo se transforma.”